Um Despertar

Um texto sobre o primeiro livro da trilogia Xenogênese: Despertar, de Octavia Butler.

Onde o câncer vira cura e os humanos olham com inveja aquela linguagem de imagens sensoriais, embora aqui também haja, com algumas amigas, uma comunicação viva de sinais que substituem as palavras. A presença forte da personagem principal, Lilith de alguns tantos mundos, que tem no corpo os genes que passam de morte pra vida e lidera machos com machados e machetes. Leva porrada, tentam derrubá-la, matam de alguns jeitos, mas precisam lidar com o protagonismo de uma mulher negra, que acusam ser um híbrido de humano e alienígena pela capacidade de cura e luta.

O enredo me envolveu de um jeito diferente. As exclamações, asteriscos, frases em caixa alta que tentavam integrar à história a minha indignação e emoção. Uma relação íntima com o papel, no sobrescrever das páginas com comentários tão particulares que provavelmente no instante seguinte ou em uma segunda leitura já não teriam mais sentido. O livro me incomodou, me fez gritar em silêncio com os personagens e a ideia de humanidade que, mesmo depois de demonstração falida, alguns relutavam em defender. Precisaram matar uns aos outros e serem capturados, terem sua autonomia e seus corpos usados contra a sua vontade, em uma permuta genética fascinante e eticamente horrível, para continuarem sem perceber que o problema era esse tipo de humano. Um antropocentrismo que incomoda profundamente quem lê e pensa em conjunto com as imagens bonitas que o livro traz no final: as pessoas reunidas em torno de fogueiras, conversando e comendo, enquanto desfrutam da presença umas das outras.

Dá para pensar muito com a ficção de Octavia Butler. Ainda mais pra nós, acostumados a se colocar em relação ao Outro e ao grande organismo que é a Terra como o ser extraordinário, o excepcional, que pela linguagem, cognição e sociabilidade se diferencia dos “que não pensam” – o que ajuda a justificar, muitas vezes, a subjugação e a exploração desmedidas. De repente os personagens se deparam com algo não humano, com características estranhas em relação as que estamos habituados a ver e a apontar no diferente da subhumanidade (os povos da terra, indígenas, quilombolas, camponeses). Encontramos uma espécie que nos prende em vez de a prendermos e, que, nesses parâmetros, é mais inteligente e poderosa que nós. Como pode? Enquanto mexemos com máquinas e fundimos ferro, eles fazem os genes dançarem, transformam tudo em matéria viva, mais sofisticada, potencializada, com lógica diferente. Não tão diferente dos povos que sobrevivem a esta guerra contínua desde a colonização, que fazem seus cestos e vivem agarrados a terra – mas esses nem são considerados tão humanos assim. O fato é que não parecemos tão bons perto do povo que a autora apresenta: acabamos com todas as formas de vida, nos destruímos com as técnicas que nos gabamos e pisamos o pé para defender e, continuamos a defendê-las para além da órbita da lua. Não estamos acostumados a lidar com um diferente a que não temos controle, que não podemos escravizar e dizimar.

Ailton Krenak, em outro livrinho mágico, escreve sobre isso: “matamos um leão e o penduramos na parede para mostrar que somos mais bravos que ele”. Matamos os que estão aí só para nos suprir com roupa, comida e abrigo. Esse clube da humanidade, que ele bem descreve como uma ameba gigante, que devasta tudo ao seu redor, pelos olhos dos Oankali são fantásticos: nunca viram tanta morte e vida juntas, tanta potencialidade, hostilidade e imbecilidade. Não fazemos ideia do que é estar vivos além dos aparatos tecnológicos que podemos inventar, embora tenha gente ancestralmente tentando ensinar.

A autora, grandiosa na ficção científica, viaja à floresta amazônica e aos Andes para realizar uma pesquisa que se transforma nessa trilogia. Ela apresenta, então, essa relação conflituosa com um povo que não só pensa, mas altera o nosso pensamento, nossa química corporal, nos aperfeiçoa absurdamente sem pedir permissão, como fazem os donos do poder com outros corpos e recursos da vida real, se esquecendo que uma hora até a fonte de energia para o bunker secreto que os protege pode ser desligada.

Alterações e uma tal de permuta genética que muda a memória, a força, os sentidos, a reprodução, a capacidade do corpo de despertar células e estimular o crescimento das que normalmente não se regeneram. Gente se sentindo como animal de laboratório, usado, com o corpo objetificado, exposto, mas nem chegando perto do que fizeram com o povo trazido à força da África em comércios de escravos a céu aberto. Um cárcere que parecia ora castigo ora salvação, às vezes a última chance, envolvida por uma violação do corpo, da mente e da cultura que atordoava a personagem principal. Um contato com o diferente que fazia o corpo paralisar, o olhar voltado ao rosto meio medusa e o ouvir as vozes andrógenas em conversa com um povo narcisista (nós) que se sente inteligentíssimo e que crê ser o único em dezenas de constelações. Cozinha e consumo de carne depois da pesca e o afastamento dos vegetarianos de outro mundo. A raiva por não ter carne de animal pra comer, o desejo de pisar em uma terra sua, da qual você sabe muito pouco, mas tem toda uma produção científica pra te explicar. Um estranhamento mútuo, um choque de significados, sentidos, saberes.

Os homens raivosos que não conseguiam aceitar uma mentora e líder feminina, mas que nos momentos limítrofes tinham que engolir seu conhecimento que era essencial para a sobrevivência. Homens, discursos e atos asquerosos, horrendos e misóginos, extremamente humanos, que seduziam e faziam suas mulheres segui-los, reproduzindo a violência e traindo a líder de seu gênero, que as defendia quando o caldo entornava, que trazia lenha para as noites e fogo para os motins de estupradores.

Estou ansiosa para ler os seguintes e saber o resultado dessa cruza interespécie – de uma trilogia que é germinada a três, sem que dois se toquem e sintam tudo, num desejo intenso e diferente… Como será essa cultura que não é uma coisa nem outra e se constitui das duas, com filhos irmãos que tem dois pares de pais diferentes, um homem, uma mulher e outros dois que não têm sexo nenhum, concebidos em um lugar que parece a Terra, mas é uma ilusão forjada como um set de filmagem. Talvez seja assim se continuarmos nessa guerra contra a nossa casa e enquanto não encararmos a crise ecológica que se agrava e nos engolirá. Talvez quando percebermos que o dinheiro não se come, como recupera Krenak, não tenhamos um povo alienígena pra nos capturar, nos deixar em animação suspensa por 250 anos e preparar de novo o planeta para reabitarmos.

Talvez nos salvasse uma chance de recomeço dessas, será? Nem acho que precisamos de salvação ou iluminação. Há povos da terra gritando como se faz e sobrevivendo ao pisotear dos que mandam e continuam sendo violentados. Esta ficção ajuda a repensar as nossas formas de olhar o Outro, de enxergá-lo nessa qualificação mental que, inicialmente, fazemos e que depois fica explícita em nossas ações e julgamentos, de gestos, aparências, hábitos e culturas mais ou menos humanas, mais ou menos “civilizadas” e mais ou menos domesticadas.

O texto é um misto de coisas, me fez passar muita raiva rs. E, é claro, algumas das ideias desafiam os limites que nos definem como humanos. Não sei como serão os dois próximos, o que farão com os corpos de gente e de mais ou menos gente, mas é certo que qualquer definição de uma humanidade que existe agora e a que façamos referência com certeza, estamos errados. O clubinho da humanidade anda mal e está definido de forma isolada, burra e que nos leva, cada dia de forma menos contornável, a um abismo sem asas. Talvez sem fuga, sem a possibilidade de travessia pro outro lado, sem a tentativa e o sonho de encontrar a Terra ou, para a nossa decepção, nos confrontar com uma parede que nos lembre que estamos em um laboratório com condições criadas e controladas. Sem lugar para pisar, só pó e água lamacenta e artificial.

Quem quiser, Despertar é um caminho divertido para acordar esse corpo atrofiado, que talvez leve um tempo para se alongar e conseguir andar de novo.

REFERÊNCIAS:

BUTLER, Octavia E. Despertar. Xenogênese vol.1. Editora Morro Branco, 2018.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Companhia das Letras, 2020.


Nasceu na Califórnia, em 1947. Filha de um engraxate e de uma empregada doméstica, a Grande Dama da Ficção Científica precisou lutar contra a pobreza, a dislexia e o racismo para receber um diploma universitário, e foi a primeira mulher negra a conquistar o sucesso em uma área da literatura dominada por homens: a ficção científica.

O desfile da pandemia

pandemia

Depois de quatro dias sem ver a rua, fui hoje ao supermercado. Desci a dúzia de degraus e abri o portão. Algo quebrou o silêncio da quarentena: era uma dessas figuras liminares da paisagem urbana, que costumamos ignorar, deitada no chão, escorada no muro do meu prédio. Eu sempre me desoriento quando vejo pessoas em situação de rua dormindo. O eco de uma rua quase fantasma, como em um domingo de manhã, era pouco ensurdecedor perto do que estava em mim.

Não dei dois passos, na lata de lixo logo a frente, estava a coletora de reciclagem que vejo sempre por aqui. Toda vez é um soco no estômago, mas hoje, especialmente, com o movimento de prevenção e a hashtag de ficar em casa, eu só queria gritar, pedir socorro. Tô falando de uma senhora de quase setenta anos puxando a porra de um carrinho de lixo e revirando as latas com uma máscara no rosto.

Uma tarde vazia, com pouca movimentação, ninguém circulando, prédios altos, jovens e adultos nas janelas vendo da varanda a senhora desfilando. A cena parecia ter algo de ficção (queria), como essas de fim de mundo, com clima de vida reclusa, incerteza do que está acontecendo. Mas pra quem sabe que pior que o medo do vírus é o da fome, talvez as coisas não estejam tão diferentes.

Nesse movimento de saída e retorno, a distância já era muito maior: sair, ver, voltar e continuar lendo, com o objeto ali, na sua porta. É como quando uma mulher morre, vítima de feminicídio e você mergulha, sente e depois volta a ler sobre gênero, meio desorientada. Você sabe que é importante, mas a sensação é esquisita, como se estivesse engolindo o choro no espaço público porque está todo mundo te olhando.

Voltei, sem saber o que comprei, e me deparo com mensagens bonitinhas de defensores e simpatizantes do verme que ocupa a presidência sobre a necessidade de ficar em casa e falando sobre empatia – que aliás, nem sei mais o que significa – no mesmo dia que ele edita a já revogada MP que permitia suspender contratos de trabalho por até 4 meses.

O que nos consome não se cura mais com prevenção. Uma hora o vírus passa, a situação se normaliza… pra uns.

Não há nada mais urgente que salvar o povo.

Feliz dia das crianças!

Autora: Maria Isabel Trivilin

43766932_1844668802275802_1723765668047749120_nHoje é dia das crianças e sempre gostei de escrever alguma coisa. O ano passado eu lamentava pela reforma da PEC do fim do mundo. Escrever sempre foi, pra mim, esquecer, como afirma Pessoa. A literatura me ajuda a caminhar. Ultimamente, o choro engasgado, a angústia, o medo e o grito de desespero, parecem impedir qualquer sentimento criador que deveria virar esperança. Até que me lembrei da minha janela… Falar de infância é lembrar de muitas delas.

Em 2012 a vista era a pequena comunidade rural em que cresci. Em 2013 eu saí de casa pra fazer o ensino médio (graças às políticas públicas dos governos progressistas) e vi outra, morando sozinha aos 13 anos em uma cidade que mais parecia uma grande metrópole aos meus olhos. Desta, tive um significativo encontro com os movimentos sociais. Me entendi enquanto mulher, feminista e membro de uma classe que sofre. Conheci o Partido dos Trabalhadores e o defendi e defendo, com orgulho, ainda hoje. Ano passado eu me mudei de novo e agora vejo outra janela. Eu entrei na universidade. Sou a primeira da minha família a fazer um curso de nível superior. Fui criada por uma mãe solteira e uma avó – que em meio a uma realidade cruel, nunca me deixaram faltar – e pasmem: não sou fruto de uma fábrica de desajustados.

O texto pode parecer uma espécie de história egocêntrica, mas hoje me permiti lembrar (e lamentar) por uma infância que talvez seja interrompida. O fato é o seguinte: foi muito custoso para que hoje, em 2018, uma mulher pudesse falar publicamente; para que nos almoços de domingo, nós pudéssemos levantar a voz contra um padrasto eleitor do Bolsonaro. Mulheres e homens foram torturados e mortos, junto às suas crianças, durante a ditadura. Nem preciso dizer que, sem o movimento feminista, além do voto sequer poderíamos nos pronunciar sem um silenciamento brutal, não é?

Este ano escrevi uma etnografia sobre a minha janela. Sobre a janela que me deu inicialmente a vista pro mundo: a do meu quarto, na comunidade São João. Eu queria poder falar, na linguagem acadêmica, o quanto nós temos que olhar para janelas como essas: excluídas, isoladas, caipiras, analfabetas e trabalhadoras. Eu queria falar que a festa de São João é a expressão de um modo de vida muito mais complexo. Que há complexidade em um lugar simples, onde o discurso academicista não chega. É para o povo desta janela que eu direciono meu apelo.

Vi muitos se posicionando em favor do tal candidato, pessoas que me criaram e sempre passaram às crianças da comunidade um senso de humanidade. Eu não acho que a universidade nos ensine coisa mais importante e refinada que a que vocês passavam, não acho que o conhecimento formal salvará o mundo e não acho que um vocabulário erudito diga algo sobre a sabedoria. Existem muitos conhecimentos. Mas o processo de enganação e alienação existe e precisamos encará-lo: o que dizem sobre o PT, que acabou por criar um antipetismo demoníaco (a ponto de um padre da cidade acusar o partido de satanismo), não pode nos fazer concordar com um discurso de ódio, intolerância e extermínio, pois isso é também concordar com a morte de produtos que vocês mesmo criaram, inclusive eu. Ser conivente à tortura, ao preconceito e à irresponsabilidade e falta de capacidade técnica e intelectual de conduzir o país é nos fazer retroceder em um caminho que foi construído com muito sangue.

Não manchem suas mãos. Estou falando de pessoas com a mão calejada pelo trabalho no campo, de luta e coragem numa comunidade que sempre foi exemplo em comunhão e reciprocidade, e que agora não pode ser perdida por uma construção doentia de aversão a um partido. O antipetismo não pode ser mais forte que a nossa noção de dignidade e sensibilidade com o Outro.

Façamos um exercício pelo respeito e pela existência da maioria da população que resiste nesse país. O mundo nunca será melhor, mais seguro e solidário com a pena de morte e o porte de armas, pois a única capaz de se colocar efetivamente em favor do povo e contra a corrupção chama-se educação. É por isso que precisamos lutar.

Defendamos o que é nosso, o que é do nosso povo. E para isso, é preciso deixar de lado as hesitações elitistas (já que nem elite são) e votar no adversário de um candidato despreparado e violento, de modo a respeitar a sabedoria popular e lutar pela diminuição das injustiças e desigualdades sociais.

Votar no PT, mesmo para os que não concordam com seu projeto, tornou-se uma necessidade, se o objetivo for preservar a democracia. Transcende a sua lógica e as suas cores, estamos falando de um Brasil que está sendo ameaçado e colocado à morte.

Sobrevivemos mancando há muito tempo. A realidade já parecia torturadora antes, até que a tortura na pele tornou-se um possível encontro futuro. É amedrontador. O fascismo nos persegue há muito, mas seremos maiores. Só com Haddad é possível, nesse momento, ter esperança. Se ter infância já é um privilégio, com a vitória de um representante fascista elas serão postas a trabalhar ainda mais cedo nos campos que findarão sua própria morte.

“Bolsonaro e sua corja oferecem a todos um lindo dia, junto ao fim da esperança, do sonho, do futuro e do simples direito de ser criança”.

“É que Narciso acha feio o que não é espelho”

Autora: Maria Isabel Trivilin

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Narciso é um homem normal. Um homem social.
Um desses que dormem, acordam e vivem com uma violência “natural”
A diferença é que Narciso possui um belo punhal
Ele não acha feio o que é diferente, diferente é gosto musical.
Acha feio o piercing do vizinho, o homem tatuado da esquina e a mini saia da vadia que namorou um dia.
Mas são casos diferentes…
Ele acha feio tudo que não ordena, que foge à ordem, que se difere.
Que não fere, mas nasce ferido, se o corpo for acompanhado de um gênero definido.

Narciso é um homem de bem.
Vai à igreja aos domingos, pede perdão ao seu Deus e volta flutuando em sua bela – e falsa – alma plácida
Ele só faz o que é certo, defende a moral, os costumes bons
Os direitos de seus filhos viverem num lugar com mais decência
Com menos rebeldia, com mais obediência
Com mais boca calada de quem nasceu pra obedecer.
Ele só odeia LGBTs, negros e mulheres
– e uma lista infinda de gente que não tolera, que o nascimento incomoda –
Embora diga sobre as últimas que não, a vizinha vagabunda e fofoqueira já chamou a polícia de freguesa, dizendo que o lugar de Narciso é na prisão.

Narciso tem dois filhos: Maria e João, e sua esposa Rosa na beira do fogão.
Uma menina de dezoito anos que prepara o enxoval para o casamento
Porque se está pensando em transar, então vai ter que casar.
Menina do lar, que não precisa estudar, porque lavar, passar e cozinhar é o único caminho a trilhar.
E um menino de cinco que ainda vai surpreender Narciso.
Que nasceu feito ser maior inimigo.
Que nasceu pra iluminar. Pra fazer brilhar um amor que não tem a intenção de ninguém machucar.

Ele acorda as seis, pega a condução e vai…
Enquanto as engrenagens trabalham a vida acontece: folhas caem, pássaros cantam.
O pôr do sol é bonito, mas vive sem espectadores seguindo
A família não se reúne
Não conversam, não cantam, nunca viram o mar.
O circuito de luz se apaga e, bom… Menos uma boca pra sustentar.
O moinho da vida gira e Narciso continua a apertar o botão.
Sai no início da noite, por um passeio esfumaçado que muito diz sobre seus passos forçados
Mas Narciso se conforma, porque o trabalho edifica o homem e ele é homem trabalhador.
Chega em casa, aperta outro botão e xinga os comunistas na televisão: “Protestando? Vão trabalhar! – exclama sem perdão.

Narciso é homem bom. Não faz mal a ninguém. Mas se for um baitola andando pela rua, que mude o caminho, porque “viado” não é gente de bem.
Nem é gente. É doente.
Duas meninas se beijando? Se não for em seu quarto, não tem perdão.
Gay não é gente, é aberração.

Narciso é homem de bem. Só não suporta olhar no espelho e ver que nem mais alma tem.
Ele jura que é bom, só deu com aquela barra de ferro na cabeça do filho adolescente, que resolveu aparecer em casa dizendo que ama um barbado de voz delicada
“Que escolha mais desgraçada, João?”
Mas Narciso fez um favor pra humanidade, porque gay é aberração.

Volta à igreja domingo de peito estufado: em nome de Deus, fez um favor pra nação
De todos os pecados do mundo, esses ultrapassam o limite da decência e da razão.
Trair a mulher pode; dar uns supetões no fim do expediente, tudo bem…
Mas é só pra ela ficar esperta e não causar confusão
Um olho roxo em Rosa faz parte da tradição: mulher que não faz janta certa, é pau e porrada que leva ao chão.

Narciso é uma mentira disfarçada em covarde armadura destroçada
Narciso tem medo de se olhar no espelho; não suporta a diferença, não suporta a transgressão.
Por quê? Porque o Outro que ele repudia – e as violências que a ele provoca –  diz muito sobre si mesmo; porque os defeitos que vê no outro, na verdade, são seus.
Porque se for mulher, é de um batom vermelho e de uma esquina escura que precisa: um estupro pedido e uma vida acabada
Porque o Outro, se for negro, tem gatilho apontado todo dia, no meio da testa, pra entender de que ódio se trata
Porque quando a barra de ferro não acerta, vem em forma de intolerância disfarçada, que jura de pé junto que está orando por salvação
Que mesmo estando num poço regado à ódio e discriminação, tem até alguns amigos que são

Narciso, na verdade, não se suporta. Não suporta olhar no espelho.
Não há amor por si mesmo.
Sua veneração pela própria imagem é fachada frágil e rechaçada.
Mas Narciso não é o único, não
E pasmem: ele não destrói os sonhos de uma multidão de gente, aguerrida e consciente
Que afronta a heternomatividade patriarcal com uma faixa de liberdade que mata um Narciso por dia, sem qualquer falsa oração
Não por ódio ou por repressão, mas por viver com dignidade e orgulho de seu espelho de criação

Narciso bate em uma rosa, mas jamais conseguirá conter a primavera toda
Narciso e seu espelho são tão pequenos que se tornam
n-a-d-a
perto da chama revolucionária que ousa, fala e clama a satisfação
Orgulho e expressão de alguém que, sendo o Outro de uma sociedade inteira,
Ama
Resiste
Luta
Para ser um dia a mais, viva e florida,
Um grito de revolta, um exemplo de rebelião.
Um Outro em contínua expressão de coragem contra a desigualdade
Uma mulher em eterna e diária luta por igualdade e direito de subversão.

 

 

 

Conhecedores da realidade de gabinete

Autora: Maria Isabel Trivilin

IMG_20171215_201701A gente dorme e acorda e o tempo se encurta cada vez mais. Ficamos cada dia mais cansados e até o hábito de escrever e publicar algo vai sendo engolido pela rotina. Ao tirar um tempo pra isso, a lágrima vem junto. A conjuntura é dura e os retrocessos diários. Querem a morte da classe trabalhadora!

Pessoas que nunca se preocuparam com a situação do país, que nunca olharam para além de seus próprios umbigos, de repente se tornam defensores da pátria e vão às ruas fantasiados de verde e amarelo – guiados pela grande mídia, que nada mais faz que servir ao capital – para clamarem pelo fim da corrupção. Bateram panelas, pediram o impeachment de uma mulher sem crime de responsabilidade e – PASMEM –conseguiram! Hoje, todos os encabeçadores do projeto carregam em suas carcaças conservadoras e reacionárias, inúmeros processos envolvendo tudo aquilo que “abominavam”, tendo não só acusações de corrupção, mas PROVAS ESCRACHADAS com direito à áudio e mala de dinheiro. Porém, o corrupto principal, aquele que investigam e querem prender a todo custo, ainda é Lula. Mesmo sem uma prova sequer, é Lula que querem destruir e que todos chamam de bandido.

Nas universidades, o discurso de muitos é que somente a “linguagem culta” nos fará transformar o mundo (risos de extremo nervoso). O ódio entalado na garganta agora se faz presente, talvez pelo simples fato de que as pessoas que sempre me inspiraram a querer entender o mundo nem sabem o que significa a palavra “culta”, mas possuem muito mais culhão, inteligência e conhecimento sobre a realidade social que esses pseudo-sábios-doutores que se privam às cátedras universitárias.

Tudo isso para dizer que agora, a nova da vez é o fim da gratuidade das universidades. A vontade de gritar que a culpa é dos paneleiros que retiraram um governo progressista do poder à coronhadas, é grande. Mas não não dá pra esquecer que muito trabalhador alienado estavam ali, cavando sua própria cova e exaltando o que o capitalismo faz conosco: tenta nos fazer crer e lutar contra a nossa gente; contra a classe que somos. Faz com que nossos sonhos se restrinjam a pertencer a uma classe média nojenta, atrasada, que sequer existe.

“Fim da universidade pública”, eis o estopim de algo que já deveria ter nos revoltado há tempos. Era previsível, por óbvio, que após tantas reformas destrutivas, escravistas e excludentes, tentariam acabar com os espaços mais poderosos que o trabalhador ainda possui. Pelo caráter emancipatório que a educação carrega, sabemos que há muito  (desde 2003 para ser mais exata) a classe dominante treme ao ver o pobre, negro e periférico adentrando às universidades. A galera finge que não vê, mas eu sei de onde isso vem e sou fruto dessa onda (que ainda é mais criticada que a própria direita nos monopólios da sabedoria), além do mais, entendo que seja difícil engolir que quem faz revolução, pelo menos nesse momento, é quem tira o povo da extrema miséria e permite que filhos de pedreiros e empregadas domésticas se tornem doutores (ou de cabeleireiras, por que não?) Se concordo que tudo que foi feito é pouco para uma revolução? Claro que sim, pouquíssimo. Mas foram as únicas formas que chegaram ao povo, que se concretizaram na realidade através de oportunidades e direitos, diferente dos lindos discursos dos mestres e das ideias perfeitas, que nunca saem da teoria e nem chegam aos ouvidos da classe interessada.

O fim da universidade pública é o fim de muitos sonhos. É encher a academia só com gente endinheirada e fazer com o que pobre ocupe o seu verdadeiro lugar nesse sistema egoísta: bem longe dos espaços de formação e de qualquer instrumento que possa lhe fazer acordar e se rebelar; que lhe aproxime da luz do conhecimento e faça sentir orgulho de ser quem é e da luta que empreende. O fim da gratuidade é o brado forte que a direita vem carregando, desde que um nordestino metalúrgico assumiu o poder; é o grito contido de uma classe que desde o impeachment vem mostrando sua fúria e seu anseio por destruir tudo que traz a classe trabalhadora para os espaços de formulação e transformação.

No entanto, nem mesmo os pensadores nossos parecem ter compreensão deste processo. Antes da linguagem culta, formal, tem gente que conhece a fome. Isso faz muita diferença na experiência e no olhar que desenvolvemos em relação ao mundo. O fim da universidade pública é o fim da minha presença, é o fim de muitas tentativas de subversão e de chamas contestadoras. Nossa presença na universidade incomoda e a luta é para que continuemos desestruturando as elitistas ordens sociais. Não deixemos que essa onda fascista e reacionária cresça e que os sonhos dos trabalhadores sejam ceifados pela lógica neoliberal que hoje se instaura. Lutemos com armas realmente eficazes, com leitura, força e coragem. É preciso se reinventar nesse momento e entender que o projeto de outro mundo possível não será implementado em nossos lindos sonhos de verão – precisamos de políticas e ações reais, que façam a diferença na vida do povo.

Ler nos faz entender o mundo, mas a vivência de classe, a dor da desigualdade, da opressão e até a fome, nos faz conhecê-lo com igual legitimidade. Restringir militâncias a artigos científicos e falas em espaços privilegiados, em que só ouvem pessoas igualmente privilegiadas (como eu, que estou agora tendo acesso à universidade), não faz diferença na vida de quem não tem tempo pra pensar, quando o despertador aponta que é hora de novamente trabalhar. O poder intelectual talvez faz com que as pessoas esqueçam o real significado da classe dominada: os operários, o suor no rosto e as linhas de expressão que gritam. Talvez tenham se esquecido que, infelizmente, a maioria da população desse país não tem acesso a Marx, e muitos nem a uma refeição decente.

Ler o mundo é preciso, mas não conhecemo-lo somente através de livros, embora eles sejam essenciais. Se vangloriar por uma militância de discurso que nunca deixará de ser discurso, de falas que nunca deixarão de ser falas, nem chegarão aos ouvidos nossos, parece ser para muitos a forma mais revolucionária de encarar o mundo e disseminar nossos nobres ideais. Rejeito, minha leitura e luta são outras, amar e mudar as coisas me interessa bem mais.

Filho da puta

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       Ouvi dizer que perdido é filho de puta em pleno dia dos pais.

Prazer, puta.
E olha que nem pretendo ter
Mas quando meu filho nascer
Direi a ele quem é a puta que as pessoas dizem ser

Esse ditado é engraçado
Versos roubados de um machista desgraçado
Vejam só, puta minha mãe não é
Mas sempre fiquei perdida no dia dos pais de fé
Pela presença que me faltou
Pelo primeiro dia de aula que sem meus materiais ele me deixou
Pelo pai que não me criou
Tô perdida é pelo homem que me rejeitou
Mas ainda ousam dizer que a culpa é da puta que me pariu e não da porrada que a arrebentou

Tô mais perdida que filho de um boçal em dia de invenção capitalista, modelo de família burguês de comercial moralista
De pai que resolveu abortar sem um dedo a ele apontar,
Tampouco uma lei e bancada evangélica pra criminalizar
De pai que não está pronto para criar
Ou não está afim de assumir o orgasmo que depois tem muito a clamar,
Que estende a mão cobrando a ele ajudar

Tô mais perdida que filho de um pai que só queria violentar
Daqueles que dizem que é preciso de um homem pra reavivar
A puta que me criou me ensinou que macho algum me faz a cabeça abaixar
Que o caminho é cruel, mas é pela vida das mulheres que eu continuo a lutar

Só queria por fim dizer
Que não sou, mas talvez possa ser
Que a puta que me pariu me fez entender
Que o sistema é dos homens, mas a vida eu posso fazer

Tô mais perdida que filho sem pai em pleno dia dos pais
Perdida pelo homem que foi viver a vida, que a sociedade não penalizou
Embora condene mulher que não quer ter filhos, tolerando aqueles que mesmo tendo, nunca criou
Tô perdida não pela mãe, pela julgada barriga que me carregou
Perdida hoje estou, não como filha de puta, mas como de um pai que convenientemente me abandonou.

MACHISMO MATA – inclusive no réveillon

Autora: Maria Isabel Trivilin

elemataResolvi me sentar no beiral de minha alta casa a fim de observar a cidade e tentar entender essa triste e quase morta sociedade. O beiral era alto, como um grande muro, a primeira casa que avistei era de uma jovem de menos de vinte anos. Ela me enxergou e seu olhar abriu-me as portas de sua alma, como se eu pudesse conhecer toda a sua história a medida em que as palavras saíam da silenciosa boca abrilhantada com brilho cor-de-mel:

Camila acordou, tomou café e ligou a televisão para assistir os desastres do dia. Na rede Golpe, se deparou com uma notícia que fez arder sua própria espinha – e o resto de alma que ela ainda possuía. Um pai, desnorteado por não poder ver mais o filho – já que judicialmente ele foi proibido após violentar sexualmente a criança – por culpar a mãe e sentir por ela um ódio imenso, mata o filho, a ex-esposa e mais dez pessoas da família durante festa de ano novo. Para além disso, a matéria dizia que ele havia deixado cartas para que sua lógica doentio se perpetuasse, já que afirmava que todas as feministas mereciam morrer por serem vagabundas, ardilosas e por inspirarem outras vadias a fazer o mesmo que a jovem mulher de Campinas fez: afastar um pai perigoso, que estuprou o próprio filho, para que ele não o machucasse mais. E terminava as barbaridades dizendo que a responsabilidade desses pais seria acabar com todas essas mulheres e suas famílias, para garantirem a justiça, a dignidade e a honra no leito de sua morte.

Camila ficou assustada e mais pálida que os copos de leite do jardim de sua avó. Ora bolas, ela também era uma vadia. Na verdade, sem entender, era assim que a chamavam. Certa vez, a jovem estava indo ao supermercado, cerca de seis horas da tarde, quando se deparou com um homem que a parou cruelmente e a violentou, marcando sua vida sofrida para sempre. Da violência, surgiu Augusto: mais um filho do estupro. Como não podia nem pensar em aborto, criou o menino e no último dia 10 ele completou dois anos. Quando a vila ficou sabendo, Camila se ferrou. A chamaram de nomes horrorosos e, por óbvio, a culparam por estar naquele horário de shorts curto perambulando pela rua… Até porque, uma menina decente de 15 anos não sairia as seis horas da tarde sozinha de casa com vestimentas indecentes, isso notoriamente é comportamento de mulher que merece e está pedindo para ser estuprada.

Camila hoje tem apenas dezessete anos e está assustada com a carta do ex marido lunático, já que se a ideia se alastrar, muito provavelmente ela também será morta por sua inevitável condição inferior de mulher vadia. Se virar epidemia, talvez a amaldiçoada espécie desapareça, já que aos olhos da doente sociedade, todas as mulheres em alguém ponto foram, são ou serão vadias.

Camila se deitou e chorou a noite toda por lembrar da violência que sofrera – cicatrizes que vinham à tona todas as vezes que olhava para o doce Augusto, que apesar de não ter culpa de nada, sem saber, era um filho do crime. Camila sentiu medo de morrer novamente, mas desta vez pra sempre, já que como o assassino registrou, “as mulheres têm medo de morrer com pouca idade” – os homens não, pois são fortes, machos, robustos e corajosos.

Sua história tocou meu coração, pois sinto na pele o quão difícil deve ser a vida de Camila. Sei o quanto a opressão dói, o quanto tememos por um futuro próximo de estupro, violência sexista ou uma vida inteira encarcerada em raízes patriarcais. Medo ainda maior por ser feminista e o alvo mais claro, a culpada suprema pela desordem da humanidade: mulheres que se rebelam e são chamadas de vadias até a morte por terem coragem de enfrentar seus opressores.

Notícias como essas apenas aumentam o clamor de minha luta, mas de fato é tormentador pensar que ainda há gente que diga que machismo não machuca, não mata, quiçá existe. Esse coitado de Campinas que matou doze pessoas numa festa de réveillon por ódio e sede de justiças às vadias, deixou-nos cartas que dizem por si só. Que clamam sozinhas o que protesto em todas as manifestações populares que, apesar das inúmeras críticas, foram as grandes responsáveis por garantirem o direito ao voto feminino e aos demais direitos básicos já conquistados. As cartas evidenciam fortemente o discurso de ódio contra as mulheres, chegando até a tragédia que as matou.

O mais doloroso é ver meninos jovens já consumidos pela triste construção sexista, proliferando bobagens e compartilhando mensagens que defendem ações como estas, em que mulheres são mortas e estupradas por não obedecerem as ordens de seus homens. O mais triste é ver que o conteúdo sórdido presente na carta do assassino, apesar de ainda chocar, está presente em várias timelines Facebook à fora, com likes supremos sem que ninguém mova-se para impedir que tais catástrofes ainda aconteçam.

Sentada naquele beiral, pude refletir muito sobre o quanto o machismo mata. Mata infâncias marcadas por violência sexual, moral e física; mata meninas estupradas por tios, padrastos e até pais; mata sonhos e cria obstáculos impostos ao gênero; mata adolescentes por saírem de shorts curto na rua e ainda terem que ouvir que mereciam ser estupradas. Mata esposas que querem se separar, mas não podem por serem propriedade do homem; mata realizações pessoais que são impedidas pelo marido não deixá-la sair sozinha na rua, nem trabalhar fora – até porque, lugar de mulher é em casa, na cozinha, enclausurada no espaço privado. Mata mais de 400 mulheres por dia através de agressão e violência doméstica, mesmo com a lei maria da penha – ou “vadia da penha”, como dizia o injustiçado pai de Campinas – em vigor desde 2006. Mata, a cada 11 minutos, uma mulher por violência sexual na justa pátria amada Brasil. Mata até crianças, mata menino, mais bem menina. Mata esposa, ex-esposa (que já é mais comum na TV que comercial de margarina) e mata também família inteira durante o réveillon. Ou melhor, família inteira de vadias durante o réveillon.

É importante que ressaltemos um ponto: a culpa destas mortes não é só do pobre – em seu significado real – autor do crime, que vingou com as próprias mãos “as dores que as vadias o provocaram”, já que ele representou vários homens que possuem o mesmo desejo. A culpa é voltada a todos que simpatizam com seu sórdido discurso de ódio às mulheres e que disseram que a ex-esposa era a grande culpada por tê-lo afastado do filho que ele tanto amava – e que mesmo assim o matou. A culpa dessas mortes é sua, que fica criticando o movimento feminista sem compreender sua função social de impedir que mais mortes trágicas como essas ocorram sob o manto ensanguentado do patriarcado. A morte desse menino, de apenas 8 anos, de sua mãe e de mais dez “vadias” da família, é integralmente de todos que apoiam esse discurso e não compreendem que tornou-se uma necessidade lutar pelos direitos da mulher em uma conjuntura que apoia e assiste tantas demonstrações de desigualdade de gênero.

Como disse Ana Julia, no famoso discurso sobre as ocupações estudantis, a todos os propagadores de mensagens de ódio contra mulheres feministas, mães e ativistas da vida, que acham que todas devem morrer por serem mulheres, olhem para suas mãos límpidas e belas: elas estão manchadas de sangue. Sangue de doze pessoas e de milhares de mulheres que morrem por ano por conta desse mesmo discurso opressor, machista, sexista e que por tão naturalizado resulta até em mortes de almas e vidas.

A luta feminista é por Camila, por Maria, por todas que sofrem, lutam e resistem. Sentada naquele alto muro, fiquei me perguntando quantos inocentes ainda precisarão morrer em nome dessa opressão cruel. Estou aqui pelas mortes de tantas mulheres, crianças e jovens pelo sistema que você defende. Por fim, segundo o assassino, o Feminismo está destruindo famílias e vidas, mas nunca houve notícia de feminista entrando em uma casa e matando todos da família. Reafirmo: o Feminismo nunca matou ninguém, já o machismo? Esse mata todos os dias!

“Eu morro por justiça, dignidade, honra e pelo meu direito de ser pai!” disse o assassino.

Discurso bonito, não? Eu sim morro por justiça, dignidade, honra, liberdade e pelo meu direito de ser mulher, de viver e sobreviver em um mundo em que pessoas não são taxadas por seu gênero, mas pelo que realmente são.

 

Relato de um favelado

Autora: Mayara Strada

nossaliCarioca, morador de favela, pobre, 27 anos, filho de empregada doméstica e jardineiro. Casado, sem estudo, pedreiro, anônimo.

Apesar das dificuldades, cresci com amor. Meu amigo Fábio não teve a mesma sorte, o pai traficava, agredia-lhe juntamente com sua família e, por fim, foi morto pela polícia militar. Mas fazer o que, né? Ele sustentava a família.

Lembro-me como se fosse hoje, tínhamos dez anos e ele era meu melhor amigo, talvez o único. Sua mãe arrumou um emprego como faxineira, os patrões não gostavam muito dela, mas que escolha tia Jurema tinha? No início eu ajudava-lhe a cuidar de seus dois irmãos mais novos e pouco tempo depois tivemos que começar a trabalhar no sinaleiro, vendendo bala mesmo.

Aos onze anos trocamos os carrinhos de madeira, feitos por nós mesmos, pelo trabalho, não era muito lucrativo, mas já ajudava. Lá em casa comíamos um pedaço de pão pela manhã e apenas uma breve “jantinha” no fim do dia, já que papai e mamãe saíam antes do sol nascer e só voltavam no começo da noite. Quando chegava meio-dia meu estômago roncava, mas com as moedinhas que eu ganhava não era possível nem comprar um lanchinho.

Aos doze saí da escola, escola não dava retorno. Aos treze vi Fábio morrer, vítima de uma bala cruzada em um tiroteio no morro. Parte de mim também morrera. Dos quatorze aos dezoito catei papelão, limpei chão de restaurante, fui garçom e cozinheiro.

Aos dezenove meus pais morreram, dói até hoje saber que não pude fazer nada. Estavam voltando para casa quando foram assaltados e, como não possuíam nem um tostão na carteira, os ladrões, com raiva, os mataram.

Aos vinte anos casei, ou melhor, me juntei com a Rosa. Morávamos no barraco dos meus pais, minha herança. Nesse mesmo ano a mãe de Fábio adoeceu, falecendo um tempo depois. Foi bom ela ter ido, pelo menos descansou. Os irmãos dele trabalham comigo na obra, sinto que devo ajudá-los de alguma forma, mas não consigo fazer muito.

Aos vinte e três fui pai. Não sabia se chorava de alegria ou de tristeza. João nasceu – a esperança não. Minhas lágrimas caíam por saber que talvez ele não tivesse leite para tomar, que poderia morrer a qualquer instante por uma bala perdida, que não teria brinquedos, nem uma doce infância, talvez nem esperança de uma vida melhor.

Minutos depois a TV anunciava a corrupção do senado, o desvio de verbas públicas, o capitalismo avassalador. Olhei para o céu, com João nos braços, com a sensação de impotência diante do mundo, aquela desesperança consumia-me dia a dia.

Que país é esse, em que a corrupção acelera a desigualdade, massacra os menos favorecidos e destrói milhares de vidas todos os dias? Até quando isso vai perdurar? Que país é esse em que sobreviver é uma luta diária, um desejo constante?

Sou anônimo, talvez por isso o sistema não me olhe. Ainda assim, continuo na luta, na labuta diária.

Imagem: Grupo OPNI

 

Feliz dia das crianças!

Autora: Maria Isabel Trivilin

pec.jpgUm dia de festança, de comemoração do ser que faz com que as pessoas tenham esperança na humanidade, hoje traz uma simbologia muito mais cruel e sem ursinhos de pelúcias felizes.

Poderia escrever sobre a doçura dos olhares de uma criança, a espontaneidade de seu sorriso e a ingenuidade de seu coração, tão cândido, sem todo o sórdido lodo que inunda a maioria dos cidadãos, mas estaria sendo injusta com seus próprios passos, com seus incertos e tristes futuros.

Não há pior presente para uma criança, no dia de hoje, que a aprovação da PEC 241. Elas conviverão, nos próximos vinte anos, com o congelamento das aplicações em saúde, educação, previdência e assistência social. Não terão uma infância tão doce como a minha, quiçá uma escola – mesmo que sucateada – como a minha. Estudarão em shoppings centers e se formarão em grandes indústrias com aulas de como ser um bom empreendedor – oprimindo alguém – e aulas de como organizar prateleiras em um hiper, super, megamercado – ser oprimido por alguém.

É triste ter que apagar, mesmo em um texto tão singelo, a cor de um dia que deveria ser tão belo. Mas sejamos realistas: as crianças de hoje, chorarão muito daqui vinte anos. Aqueles que se satisfazem com pirulitos e balas de gomas, amanhã sentirão a dor da aprovação de uma medida elitista e desonesta, no dia em que comemora-se a vida em sua melhor fase. Uma proposta de emenda à constituição que cessa os concursos públicos e limita os investimentos para as despesas primárias – que afetam diretamente a população e provocam um completo desmonte e sucateamento nos serviços públicos.

Em resumo, a educação, saúde e assistência social, nos próximos dez anos, perderão mais de trezentos bilhões de reais – simplórias moedas que farão com que a tragédia se alastre e a população sofra. O descaso dos governantes não é pouco: seus salários apenas aumentam, suas bolsas auxílios também, enquanto o pobre não terá direito nem às condições básicas de vida.

Lamento por vocês, crianças. Hoje se satisfazem com adornados presentes de seus pais, mas infelizmente essa alegria é muito passageira e digna somente de vocês, com almas tão puras e mentes que ainda não compreendem a desgraça que está sendo feita com suas vidas.

O brilho momentâneo nos olhares destas crianças, me fazem temer ainda mais. Elas não terão oportunidades como eu tive, nem saberão o que são pautas progressistas e crescerão sendo oprimidas com mais ferocidade. Não sei se quando crescerem, ainda terão o direito de protestar, ocupar e resistir. Espero que tenham, pois esse é o único caminho para emancipar os trabalhadores. Não quero ser pessimista e dizer que estamos caminhando a uma ditadura, realmente espero que isso não aconteça – ainda assim, temo por Temer, por querer privatizar nossa educação e criminalizar nosso movimento.

Não basta agora oferecer jujubas à criança, o mais triste presente já está sendo dado: a destruição de seu futuro, através dessas medidas, principalmente se ela for pobre, mulher, negra, LGBT, moradora de periferia. A estas, as palavras não cabem, não exprimem minha dor.

Por vocês, uma vida inteira de luta. Para as mães, pais, tios e todos que se dizem humanos, é isso que seus filhos, netos e afins terão na vida: menos saúde, educação e humanidade – quase zero. Mas acalmem-se, terão muitas indústrias para morreram de trabalhar; terão muitas escolas com mordaças que não os permitirão pensar; muitas matérias técnicas, sem Sociologia, Filosofia e Arte; terão uma vida toda de opressão pela frente. E isso, para enegrecer, é culpa de vocês que bateram panelas contra a “corrupção”, mas estão sentados diante das medidas que estão sendo implementadas.

A culpa do futuro dessas crianças, que com o aumento da desigualdade social, morrerão pelo capital, é de vocês! Elas morrerão de fome, como já morrem. Morrerão de fome por educação, saúde, por uma cesta básica que não receberão mais.

Estamos morrendo! A PEC da desigualdade e as reformas alienadoras ascendem. Há saída? Resistir, como sempre. Lutar para que um dia esse sistema mude e as pessoas sejam tratadas com igualdade.

Temer e sua corja oferecem a todos um lindo dia, junto ao fim da esperança, do sonho, do futuro e do simples direito de ser criança.

Do luto à luta: não reconheço governo golpista!

Autora: Maria Isabel Trivilin

CiQ7EgOUYAQB1XzHoje o tempo nublado caracteriza com clareza os sentimentos que pairam no país. Confesso que ainda tinha um pingo de esperança nessa nação perturbada, mas realmente, aos 18 anos de idade, no auge de minha jovem militância, estou presenciando um golpe.

Sinto algo ainda mais forte do que senti naquele dia em Brasília, quando o processo foi aprovado na Câmara dos Deputados. Ver trabalhadores chorando em frente ao Palácio do Planalto não passa perto do caos do momento. Feriram de vez a democracia, o voto de mais de cinquenta milhões de pessoas que foram às urnas no dia 5 de outubro de 2015 e elegeram democraticamente uma presidenta – aliás, a primeira mulher a presidir o idolatrado pau-brasil.

Constatamos um golpe de estado contra toda a classe trabalhadora, sofrida, que há 14 anos usufrui de políticas públicas que, incontestavelmente, transformaram, através de reformas populares, o curso forçado das águas mercantis, levando pão a mesa dos pobres, trazendo os negros e periféricos para as universidades e dando-os acesso à saúde e à uma vida mais digna. Hoje, esse ciclo 13+1 se encerra, com o pesar de inúmeros brasileiros que temiam por Temer, temiam por observar a democracia caminhando ao abismo juntamente com toda a nossa luta, sem que pudéssemos reagir à altura. Notando que, estamos novamente adentrando um período dominado por fascistas, machistas, racistas e tirânicos engravatados.

Tentaram, insistiram e conseguiram usurpar o digno direito de uma mulher governar a nação. Uma mulher que teve sua vida exposta, que foi torturada durante a ditadura militar e que não baixou a guarda – também não baixaremos. Apesar de todas as falhas de seu governo, que indico inúmeras críticas, nenhum ser ressentido, que não sabe lidar com as frustrações da perda ou com a decoração de sua posição tinha o direito de tirá-la de onde o povo a colocou. Pedaladas fiscais não são motivos para um impeachment e todos os imundos daquele tribunal sabem disso. Não tendo crime de responsabilidade, é golpe! É golpe de novo, meu povo!

Hoje a dor não é só por terem ferido a democracia, a constituição e o voto do povo suado das ruas brasileiras, mas por notar mais uma mulher sendo injustiçada, rebaixada, tendo todas as suas forças violadas por truculentos seres que não conseguem lidar com a ideia de que a população avança, que há pobre na universidade e na fila do pão; tiranos que não conseguem ver uma mulher empoderada, discursando um texto que ficará para a história, assim como toda a sua luta e garra; por homens que não conseguem ver a classe trabalhadora com direitos, que não enxergam as belezas que produzimos e não nos tratam com humanidade.

A dor está em cada pétala de rosa que caiu sobre o chão naquele 30 de abril, naquela chacina criada por um apoiador de Temer nas ruas do Paraná. A dor está naquela mata em que dois companheiros do MST foram mortos por estarem lutando pela terra. A dor está por Jadson José, estudante de negro e da periferia, que foi morto pela polícia militar. A dor está em saber que isso será cada vez mais comum e que agora terão caminho aberto para aniquilarem nossos sonhos, matarem nossas almas e venderem nossos espíritos. A dor está em saber que agora serei ainda mais produto, menos gente; ainda mais mercado, mais identificada por um código de barras inamovível e morto. Agora o caminho se alongou para aquela sociedade que eu tanto luto: mais humana, igualitária, sem 1% possuindo toda a riqueza dos 99%. Agora a luta de classes será brutal, companheiros. A classe oprimida terá que se unificar ou será morta de novo, como em 1964.

Minha tristeza é por todo trabalhador que hoje levanta a bandeira do golpe com glória, pela grande massa alienada que não faz ideia que a ponte resulta em um precipício. É triste ver jovens felizes com o que nos foi atribuído, fechando os olhos para a parcialidade que reina nos três poderes. Entretanto, meus olhos lacrimejados não neutralizam a força de minha luta, a lamentação não transformará a realidade. É preciso permutar o luto por luta. Agora ou perdemos a paciência ou perderemos a vida. A calmaria acabou, a lei da mordaça avança, juntamente com todas de natureza elitista e conservadora.

Declaro guerra aos golpistas! Enquanto houver um rico ceifando a vida de um pobre, enquanto uma classe minoritária possuir toda a riqueza de um povo, enquanto houver jovens morrendo pela política militar, uma mídia manipuladora, tentativas de mercantilizar o ensino e todas as nossas forças vitais, haverá luta, resistência e muitas percas de paciência.

É com pesar que encaro a morte da jovem democracia. Assim como o jovem Jadson José, ela foi morta pela polícia militar. Morta pela mídia golpista, por essa lógica elitista cruel e pelos fascistas que agora estão no poder. Eu não reconheço esse governo, ele não é legitimado pelo povo!

A juventude da classe trabalhadora resiste! Fora, Temer!!!