Um Despertar

Um texto sobre o primeiro livro da trilogia Xenogênese: Despertar, de Octavia Butler.

Onde o câncer vira cura e os humanos olham com inveja aquela linguagem de imagens sensoriais, embora aqui também haja, com algumas amigas, uma comunicação viva de sinais que substituem as palavras. A presença forte da personagem principal, Lilith de alguns tantos mundos, que tem no corpo os genes que passam de morte pra vida e lidera machos com machados e machetes. Leva porrada, tentam derrubá-la, matam de alguns jeitos, mas precisam lidar com o protagonismo de uma mulher negra, que acusam ser um híbrido de humano e alienígena pela capacidade de cura e luta.

O enredo me envolveu de um jeito diferente. As exclamações, asteriscos, frases em caixa alta que tentavam integrar à história a minha indignação e emoção. Uma relação íntima com o papel, no sobrescrever das páginas com comentários tão particulares que provavelmente no instante seguinte ou em uma segunda leitura já não teriam mais sentido. O livro me incomodou, me fez gritar em silêncio com os personagens e a ideia de humanidade que, mesmo depois de demonstração falida, alguns relutavam em defender. Precisaram matar uns aos outros e serem capturados, terem sua autonomia e seus corpos usados contra a sua vontade, em uma permuta genética fascinante e eticamente horrível, para continuarem sem perceber que o problema era esse tipo de humano. Um antropocentrismo que incomoda profundamente quem lê e pensa em conjunto com as imagens bonitas que o livro traz no final: as pessoas reunidas em torno de fogueiras, conversando e comendo, enquanto desfrutam da presença umas das outras.

Dá para pensar muito com a ficção de Octavia Butler. Ainda mais pra nós, acostumados a se colocar em relação ao Outro e ao grande organismo que é a Terra como o ser extraordinário, o excepcional, que pela linguagem, cognição e sociabilidade se diferencia dos “que não pensam” – o que ajuda a justificar, muitas vezes, a subjugação e a exploração desmedidas. De repente os personagens se deparam com algo não humano, com características estranhas em relação as que estamos habituados a ver e a apontar no diferente da subhumanidade (os povos da terra, indígenas, quilombolas, camponeses). Encontramos uma espécie que nos prende em vez de a prendermos e, que, nesses parâmetros, é mais inteligente e poderosa que nós. Como pode? Enquanto mexemos com máquinas e fundimos ferro, eles fazem os genes dançarem, transformam tudo em matéria viva, mais sofisticada, potencializada, com lógica diferente. Não tão diferente dos povos que sobrevivem a esta guerra contínua desde a colonização, que fazem seus cestos e vivem agarrados a terra – mas esses nem são considerados tão humanos assim. O fato é que não parecemos tão bons perto do povo que a autora apresenta: acabamos com todas as formas de vida, nos destruímos com as técnicas que nos gabamos e pisamos o pé para defender e, continuamos a defendê-las para além da órbita da lua. Não estamos acostumados a lidar com um diferente a que não temos controle, que não podemos escravizar e dizimar.

Ailton Krenak, em outro livrinho mágico, escreve sobre isso: “matamos um leão e o penduramos na parede para mostrar que somos mais bravos que ele”. Matamos os que estão aí só para nos suprir com roupa, comida e abrigo. Esse clube da humanidade, que ele bem descreve como uma ameba gigante, que devasta tudo ao seu redor, pelos olhos dos Oankali são fantásticos: nunca viram tanta morte e vida juntas, tanta potencialidade, hostilidade e imbecilidade. Não fazemos ideia do que é estar vivos além dos aparatos tecnológicos que podemos inventar, embora tenha gente ancestralmente tentando ensinar.

A autora, grandiosa na ficção científica, viaja à floresta amazônica e aos Andes para realizar uma pesquisa que se transforma nessa trilogia. Ela apresenta, então, essa relação conflituosa com um povo que não só pensa, mas altera o nosso pensamento, nossa química corporal, nos aperfeiçoa absurdamente sem pedir permissão, como fazem os donos do poder com outros corpos e recursos da vida real, se esquecendo que uma hora até a fonte de energia para o bunker secreto que os protege pode ser desligada.

Alterações e uma tal de permuta genética que muda a memória, a força, os sentidos, a reprodução, a capacidade do corpo de despertar células e estimular o crescimento das que normalmente não se regeneram. Gente se sentindo como animal de laboratório, usado, com o corpo objetificado, exposto, mas nem chegando perto do que fizeram com o povo trazido à força da África em comércios de escravos a céu aberto. Um cárcere que parecia ora castigo ora salvação, às vezes a última chance, envolvida por uma violação do corpo, da mente e da cultura que atordoava a personagem principal. Um contato com o diferente que fazia o corpo paralisar, o olhar voltado ao rosto meio medusa e o ouvir as vozes andrógenas em conversa com um povo narcisista (nós) que se sente inteligentíssimo e que crê ser o único em dezenas de constelações. Cozinha e consumo de carne depois da pesca e o afastamento dos vegetarianos de outro mundo. A raiva por não ter carne de animal pra comer, o desejo de pisar em uma terra sua, da qual você sabe muito pouco, mas tem toda uma produção científica pra te explicar. Um estranhamento mútuo, um choque de significados, sentidos, saberes.

Os homens raivosos que não conseguiam aceitar uma mentora e líder feminina, mas que nos momentos limítrofes tinham que engolir seu conhecimento que era essencial para a sobrevivência. Homens, discursos e atos asquerosos, horrendos e misóginos, extremamente humanos, que seduziam e faziam suas mulheres segui-los, reproduzindo a violência e traindo a líder de seu gênero, que as defendia quando o caldo entornava, que trazia lenha para as noites e fogo para os motins de estupradores.

Estou ansiosa para ler os seguintes e saber o resultado dessa cruza interespécie – de uma trilogia que é germinada a três, sem que dois se toquem e sintam tudo, num desejo intenso e diferente… Como será essa cultura que não é uma coisa nem outra e se constitui das duas, com filhos irmãos que tem dois pares de pais diferentes, um homem, uma mulher e outros dois que não têm sexo nenhum, concebidos em um lugar que parece a Terra, mas é uma ilusão forjada como um set de filmagem. Talvez seja assim se continuarmos nessa guerra contra a nossa casa e enquanto não encararmos a crise ecológica que se agrava e nos engolirá. Talvez quando percebermos que o dinheiro não se come, como recupera Krenak, não tenhamos um povo alienígena pra nos capturar, nos deixar em animação suspensa por 250 anos e preparar de novo o planeta para reabitarmos.

Talvez nos salvasse uma chance de recomeço dessas, será? Nem acho que precisamos de salvação ou iluminação. Há povos da terra gritando como se faz e sobrevivendo ao pisotear dos que mandam e continuam sendo violentados. Esta ficção ajuda a repensar as nossas formas de olhar o Outro, de enxergá-lo nessa qualificação mental que, inicialmente, fazemos e que depois fica explícita em nossas ações e julgamentos, de gestos, aparências, hábitos e culturas mais ou menos humanas, mais ou menos “civilizadas” e mais ou menos domesticadas.

O texto é um misto de coisas, me fez passar muita raiva rs. E, é claro, algumas das ideias desafiam os limites que nos definem como humanos. Não sei como serão os dois próximos, o que farão com os corpos de gente e de mais ou menos gente, mas é certo que qualquer definição de uma humanidade que existe agora e a que façamos referência com certeza, estamos errados. O clubinho da humanidade anda mal e está definido de forma isolada, burra e que nos leva, cada dia de forma menos contornável, a um abismo sem asas. Talvez sem fuga, sem a possibilidade de travessia pro outro lado, sem a tentativa e o sonho de encontrar a Terra ou, para a nossa decepção, nos confrontar com uma parede que nos lembre que estamos em um laboratório com condições criadas e controladas. Sem lugar para pisar, só pó e água lamacenta e artificial.

Quem quiser, Despertar é um caminho divertido para acordar esse corpo atrofiado, que talvez leve um tempo para se alongar e conseguir andar de novo.

REFERÊNCIAS:

BUTLER, Octavia E. Despertar. Xenogênese vol.1. Editora Morro Branco, 2018.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Companhia das Letras, 2020.


Nasceu na Califórnia, em 1947. Filha de um engraxate e de uma empregada doméstica, a Grande Dama da Ficção Científica precisou lutar contra a pobreza, a dislexia e o racismo para receber um diploma universitário, e foi a primeira mulher negra a conquistar o sucesso em uma área da literatura dominada por homens: a ficção científica.

Publicado em 11 de dezembro de 2020, em Sem categoria. Adicione o link aos favoritos. Deixe um comentário.

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